Pandemia

Sem plano integrado de gestão,
Brasil perde corrida
contra o novo coronavírus.

Sábado, 6 e domingo, 7 de março

Divulgação

Médica infectologista, doutora em Biologia de Agentes Infecciosos e Parasitários e professora dos cursos de Medicina da Uepa e da Unifamaz, Cléa Bichara (foto) traça um quadro completo da pandemia no País e no Pará. Para ela, faltam exemplos, atitudes e campanhas de conscientização da população, diariamente estimulada contra as medidas de prevenção. Pior, arremata a infectologista: “Faltou dar crédito à ciência”.

  • O Pará e o Brasil vivem em meio a uma suposta segunda onda da pandemia do novo coronavírus. Quem subestimou a doença: os governos ou a população?
  • Estamos em outro “pico”, não zeramos a transmissão durante o ano todo. O País não tem um plano de gestão com ações coordenadas para o enfrentamento da pandemia, que deveria ter sido executado em curto, médio e longo prazo. Não temos testagem e rastreamento com tecnologia molecular universal. O que o Brasil adquiriu foram “testes rápidos”, pouco usados no mundo por não apresentarem a acurácia e desempenho satisfatório para o diagnóstico da Covid. Todos os dias começaram do “zero”, e agora estamos vivendo repetições de momentos mais críticos, em amplo sentido. O Brasil é um país continental. Estados e municípios tentam cumprir suas estratégias atendendo suas particularidades. As diferenças são muito claras. Há necessidade emergencial de ações integradas, simultâneas, dirigidas às prioridades regionais, o que está longe de acontecer. Grande parte do comportamento da população é reflexo disso.       
  • A população tem contribuído pouco com o distanciamento social. O que pode ser feito para estimular a adesão da população?
  • Dar exemplo, ter atitude, fazer campanhas em todas as mídias possíveis, além de outras questões. Vivemos um momento de grande conflito entre o que é pertinente ao processo de adoecimento e de medidas de prevenção baseados no conhecimento cientifico e nos posicionamentos políticos com grande irresponsabilidade, pois repercute no descontrole da pandemia e aumento de mortes. Não há um alinhamento entre os níveis de gestão; muito pelo contrário: há uma campanha e até ameaças contra os gestores municipais e estaduais que tentam executar seu planejamento. A maior parte da população sabe o que deve fazer, mas é estimulada todos os dias contra as medidas de prevenção que são anunciadas como não efetivas – distanciamento social e uso de máscaras. A população tem importância fundamental e deve ser conscientizada do seu papel. No mundo, onde o controle da Covid-19 foi bem sucedido, a cidadania revelada com o compromisso “comigo e com o outro” foi a medida padrão ouro. 
  • As novas medidas restritivas decretadas pelas autoridades de saúde do Estado são suficientes para conter o avanço da transmissão? 
  • Trazem esperança. Ninguém pode negar que há uma expectativa positiva. Já tivemos a experiência aqui mesmo em nosso Estado, mas, novamente enfatizo a necessidade de ações integradas no País, um estimulo para maior adesão e aceitação da população. Tais medidas não são aleatórias, trazem respaldo da ciência experimentada no mundo todo. Tais medidas buscam o controle e a redução transmissão. Lógico que não é para “acabar com a pandemia”, é para reduzir taxa de transmissão, conciliar com a capacidade de assistência da rede de saúde e, ao mesmo tempo, não fechar totalmente a economia. O vírus não respeita horários: circula 24 horas junto com seu hospedeiro. Assim, a transmissão ocorre a qualquer momento, sobretudo quando há “aglomeração”. O que se tenta estabelecer é a conciliação da restrição das atividades que favoreçam a circulação de pessoas com a manutenção das atividades comerciais de maior prioridade, reduzindo horário de funcionamento e agora até o de pessoas – o chamado “toque de recolher”. 
  • Como a Sra. avalia a atuação dos governos locais – fechamento de hospitais de campanha e afrouxamento de medidas restritivas – no combate à pandemia neste ano?
  • Quem acompanha a ocupação de leitos diariamente pode observar a instalação dos hospitais de campanha um pouco antes do grande “pico” da pandemia, pelo menos em Belém. Entretanto, tanto no nível público quanto privado as portas das urgências muitas vezes, por motivos diversos, estavam fechadas. Foi uma “avalanche” jamais vista em todos os níveis na rede de saúde, com a oferta abaixo da procura. Houve uma rápida adequação da atenção, separando o nível de assistência, com triagem de pacientes conforme a necessidade de cada um e gravidade – ampliação de leitos clínicos e de UTI, ambulatórios específicos, teleconsultas, etc… Superado o grande momento – só que só em maio somaram mais de 3 mil óbitos -, os leitos foram reduzidos, hospitais de campanha, fechados e cirurgias eletivas e consultas por outras causas voltaram à normalidade. E, as medidas de restrição colocadas por força de decretos foram mudando de acordo com os resultados das avaliações epidemiológicas, mas o distanciamento, o uso de máscaras e a higienização das mãos nunca deixaram de ser recomendados e até obrigatórios. Não precisa de decreto para tal. É importante o estimulo, campanhas reforçando a importância de manter todos os cuidados. E ai outros fatores foram somados, aglomerações reforçadas pelo calendário cultural e social e mudanças no comportamento do vírus. Mudou no mundo, mudou aqui.
  • As festas de final de ano e o carnaval, que levaram centenas de pessoas ao interior do Estado podem ser apontados como responsáveis por esta nova onda de infecções no Pará?
  • Há vários fatores envolvidos, e o calendário cultural e social de cada área geográfica contribuiu muito – verão e inverno europeu e nos EUA -; férias de julho no Pará. A procissão do Círio não ocorreu, mas os almoços sim, as eleições, festas de final do ano, carnaval… Somando-se ao aparecimento das mutações virais, novas variantes, possibilidade de reinfeção, além das características de elevada transmissibilidade que vêm sendo identificadas por pesquisadores do mundo todo, começando pelos ingleses. Na África do Sul foi descrita uma nova variante identificada pelo sistema de vigilância em saúde. A variante brasileira foi descoberta circulando no Japão, em material coletado de viajantes procedentes do Amazonas. Assim, a falta de adesão às medidas preventivas de forma individual e coletiva impacta sobremaneira no aumento do número de casos, das formas graves e complicadas com necessidade de atenção hospitalar e com evolução para o colapso da rede assistencial, como está sendo visto em todo âmbito nacional. 
  • O Plano Nacional de Vacinação, sua aplicação nos Estados e a eficácia das vacinas disponibilizadas estão dentro das expectativas dos cientistas?
  • Ainda não está disponível no mundo todo uma alternativa terapêutica especifica comprovada com ação contra o SARS-CoV-2. As vacinas surgem como uma das mais importantes estratégias para evitar formas graves e complicadas da Covid-19. Foi um esforço multicêntrico internacional para em tempo recorde termos várias opções de vacina seguras, com variável efetividade, mas todas com a função comum de evitar o adoecimento com gravidade. Muitas respostas sobre as vacinas estão ainda sendo observadas, como, por exemplo, quanto tempo perdurará a proteção, além de outras. Entretanto, novamente, o mundo acompanhou o Brasil, subestimando a aquisição de vacinas, cujas pactuações iniciaram ainda no final do primeiro semestre de 2020. Nossas autoridades técnico-cientificas não foram ouvidas, e agora estamos observando falta de vacinas neste momento tão crítico. Ocupamos o segundo lugar em número de óbitos no mundo, com a imagem do País que pior conduziu a pandemia, mesmo tendo todas as condições para ser tudo tão diferente, melhor e assertivo. Não falta recurso e nem expertise profissional. Hoje caminhamos lentamente com a vacinação no País e vemos em tempo real Estados interromperem a vacinação das suas populações por falta de vacinas, tudo resultado da ausência de um plano nacional de gestão. Mediante tal situação, é necessário que Estados e munícipios ganhem liberdade para comprar os imunizantes e protejam sua população. Mas, o Brasil vai ter que aguardar. 
  • Este momento já registra mais casos e mortes diariamente do que nos piores cenários vividos ano passado. Onde falhamos e o que pode ser feito?
  • Voltamos a dizer que foram somatórias de situações já pontuadas que colocam o Brasil com um dos cenários mais graves do mundo. Faltou dar crédito à ciência, seguir experiências com melhores resultados, comando geral, logística. Somamos problemas existentes com os novos que surgiram e, quanto à grande barreira que poderia ser a vacina estamos de novo correndo atrás. Há urgência em tomadas de decisões que impactam na vida e sobrevida das pessoas. Estamos falando de nossas famílias, nossos amigos, falando de você.  Precisamos da implantação universal da vacinação, assim como a testagem massiva da população para identificação imediata de contactantes, aprimorar a rede de vigilância diagnóstica para o sequenciamento e identificação de novas variantes. Estamos presenciando a desconstrução da saúde pública do País, que até pouco tempo tinha  reconhecimento mundial em diferentes áreas como, por exemplo, o Programa Nacional de Imunizações, que apesar de contar com pessoal de elevada formação técnica, hoje se vê com limitação de suas ações. Embora necessária, se mostra ineficaz a tentativa de ampliação de leitos de modo isolado. Precisamos de força-tarefa para prevenção com as estratégias sabidamente efetivas de vacinação, educação e testagem em larga escala. O foco é ninguém precisar internar.
  • É muito importante enfatizar que os profissionais de saúde fazem tudo que podem, todos os dias, pagando inclusive com a própria vida na luta contra a Covid-19. Todos nós precisamos da esperança de que é possível conviver de outro modo com a pandemia.