Herança transplantada e enriquecida: “Além do total silêncio, lágrimas brotavam dos rostos desfeitos pela tristeza. Reinava a consternação”.
Sebastião Godinho*

Herdamos dos nossos irmãos de além-mar as práticas devocionais da Paixão de Cristo, que vieram para cá transplantadas, no Século XVII, muito provavelmente pelas irmandades religiosas.  Segundo os cronistas, nossos antepassados não apenas adotaram as solenidades da corte portuguesa como as enriqueceram, nelas incluindo novos usos.

Na Quinta-feira de Endoenças e na Sexta-feira da Paixão era visível a transformação no comportamento das pessoas. Além do total silêncio, lágrimas brotavam dos rostos desfeitos pela tristeza. Reinava a consternação.  As culpas dos escravos eram relevadas e o azorrague descansava de seu ofício sangrento. Os inimigos se aproximavam para o perdão recíproco. Os jornais deixavam de circular e os carros eram recolhidos às cocheiras.  Todo trabalho era interrompido. O povo, vestido de crepe, seguia a pé pela cidade buscando as igrejas, de cabeça baixa, reverente e pesaroso.

A Procissão do Fogaréu, na Quinta-feira de Endoenças, promovida pela Irmandade da Misericórdia, saía da Catedral pontualmente às 19 horas, percorria diversas artérias, parava em algumas igrejas e só retornava à Sé por volta das 22 horas.

Resvalando pelas veredas do tempo, chego à minha meninice quando esse período ainda inspirava nas famílias católicas um comportamento que longe está de ser comparado com a que vemos nos dias atuais.

Aqueles que são do tempo em que as tampinhas de refrigerante eram forradas com cortiça e que, portanto, já ultrapassaram o obelisco dos sessenta janeiros, exibindo as lesões que lhe impôs o açoite do tempo, hão de recordar alguns detalhes em que o período quaresmal – os quarenta dias que medeiam a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa – era guardado envolto em uma aura de contrição e piedade tão diferente do que hoje se vê, onde a competição, o hedonismo e a pressa impõem condutas nem sempre condizentes com o espírito enlutado desses dias. 

A partir do Domingo de Ramos, em casa dos meus pais, bem assim nas de toda a vizinhança, o silêncio era ditado com a força de um dogma.  Ninguém cantarolava, assobiava ou praticava qualquer ato – até mesmo o de andar – sem as cautelas necessárias para evitar o menor ruído possível.   Cozinhar, lavar louça e outros afazeres triviais do dia a dia doméstico eram tarefas desincumbidas com o máximo de cuidado para que a taciturnidade reverente não fosse quebrada por algum movimento mais brusco.

As poucas emissoras de rádios, algumas não mais existentes, transmitiam programação especial na quinta e sexta-feira santas evitando veicular anúncios inadequados e festivos.  Um locutor, com voz grave e pesarosa, anunciava, entre um e outro comunicado, obras sacras de compositores como Rameau, Corelli, Bach, Vivaldi, Purcel, Scarlatti e outros de igual grandeza. 

Meus pais jamais permitiam que o aparelho de TV fosse ligado nesses dias.  A única emissora que existia naqueles idos – início dos anos 1960 – só entrava no ar às quatro da tarde e retransmitia programação de outra emissora do sudeste, com muito pouco de produção local (Publicado originalmente em O Liberal).

*Sebastião Godinho é advogado e escritor

Godinhojuris@hotmail.com