Para além das redes sociais, o movimento das “massas” deixa resultados nas ruas, como em Santarém, onde um empresário foi violentamente agredido por se manifestar politicamente, comportamento que, ante o que se observa tende a explodir/Imagens-Redes Sociais.

Por Olavo Dutra | Colaboradores

“Todas as distâncias que o homem criou em torno de si foram ditadas pelo temor do contato”, escreveu Elias Canetti em seu inquietante “Massa e Poder”, publicado pela primeira vez em 1960. “Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato. Tem-se aí a única situação na qual esse temor transforma-se no seu oposto”.

Observando o Brasil polarizado, sem centro de equilibro, como apontam as pesquisas de opinião, tem-se a falsa impressão de ver indivíduos como protagonistas, tanto das narrativas quanto dos embates. Na verdade, os indivíduos deixaram de existir como tal; se dividiram em massas opostas. O que se vê então se constitui em uma luta de polos, de blocos, de massas densas, inclusive na constituição psíquica, onde a individualidade é o que menos conta – ou simplesmente não conta. A multidão reage por instinto.

Os blocos de massa se mantêm equidistantes porque, como explica Canetti, tão logo nos entregamos à massa, nos fortalecemos, deixamos de temer o contato do próximo que a constitui conosco. Essa inversão do temor do contato forma o chamado espírito de grupo, ou de bando, tão associado às torcidas organizadas e multidões espontaneamente sublevadas, mas pouco associado ao embate de massas raivosas que tomou conta do País e, sobremaneira, de suas redes sociais.

Canetti explica: “O mais importante acontecimento a desenrolar-se no interior da massa é a descarga. A massa não existe antes disso. Trata-se do momento em que todos se desvencilham de suas diferenças e passam a se sentir iguais”.

Mas esse sentimento de igualdade intracorpus de uma mesma massa é oposto ao sentimento de desprezo que seus membros sentem àquele que pertence a uma massa distinta da sua. É disso que decorre o sentimento de hostilidade e de perseguição mútua que massas opostas nutrem entre si. Canetti descreve assim: “Dentre os traços mais notáveis na vida da massa encontra-se algo que se poderia denominar um sentimento de perseguição, uma particular e irada susceptibilidade e irritabilidade em relação àqueles que ela caracteriza definitivamente como inimigos”.

O País que vai às urnas

Tudo nesse parágrafo do búlgaro descendente de italianos remete aos dias de hoje, no Brasil em que vivemos e que não está diante de uma eleição, de um debate cívico, de uma disputa de projetos, mas de um plebiscito entre massas previamente armadas com certezas irrefutáveis, cujo propósito já firmado, aberta ou veladamente é da destruição mútua, ápice da descarga, segundo o conceito de Canetti.

A última pesquisa Datafolha, por exemplo, teria sugerido um dado curioso que revela uma faceta quase invisível da guerra de massas à qual o País foi submetido: o brasileiro ouvido pelo instituto, refletindo a média da população, não está seguro em declarar voto em A ou B. Trocando em miúdos: teme declarar voto em Bolsonaro e ser linchado por lulistas; e teme declarar voto em Lula e ser trucidado por bolsonaristas.

Obstáculo a ser vencido…

No último dia 24, o santareno Wilmar Cabral estava em sua revenda de veículos, trabalhando, quando iniciou uma discussão trivial sobre política e políticos e sobre princípios e valores individuais, como descreveu, quando foi agredido covardemente por Egídio Wilers, bolsonarista, que mostrou sua “discordância” golpeando a cabeça de Cabral com uma banqueta, o que só não levou a um desfecho trágico graças à intervenção de terceiros. A ocorrência foi registrada por Cabral como tentativa de homicídio.

Cada pensamento contrário é um obstáculo a ser abatido. Cada indivíduo visto fora da massa à qual pertence é um alvo a ser abatido, por ser um desconhecido – aquele que você não reconhece. E, como percebeu Canetti muito antes, “não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido”.

… e aniquilamento do inimigo

Então, nesse novo ambiente, será que conseguiremos chegar, pelo temor do outro, enfim, ao voto secreto? Será que atingiremos esse grau de individualidade, por temor que seja? Eis o resultado da guerra de massas produzida pela polarização política. Agora, não é mais o “eles contra nós”, mas o “um é ladrão, o outro é genocida”, ou a terceira via – quando não ‘as vias de fato’ -, bradando, “ambos são corruptos”, com defensores de cada malta de guerra em êxtase prontos a promover o cerco e aniquilamento do inimigo.

É a ânsia da destruição e não os projetos de País que pautará o 3 de outubro em um Brasil dividido.